segunda-feira, 25 de agosto de 2014

ÁNGEL PARIENTE | Sobre surrealismo



FM – Sua estreia na poesia se deu aos 31 anos de idade e, no ensaio, aos 44 anos. Há alguma razão específica para tal fato?

AP – Penso que se trata de um problema de ritmo vital. Os livros vão se escrevendo lentamente e, em algum momento, estão prontos. Às vezes são mais de um, como no caso de Góngora, pois investigando o poeta barroco surgiu um estudo sobre sua obra, uma edição de escritos e uma antologia da poesia culterana. Três livros crescendo a um só tempo.
Ainda que não pareça, a Antología de la poesía surrealista me levou dez anos, talvez mais, ainda que intermitentemente. Ainda agitam a cauda alguns projetos à sombra do surrealismo e nestes dias estou começando a traduzir panfletos, proclamas e outros escritos surrealistas que agruparei com o título Razonado desorden (Textos surrealistas). Digo que estou traduzindo, mas também recolherei textos escritos em espanhol por Pellegrini, Dalí etc.
Não me preocupa a escritura, mesmo que não possa viver sem escrever. Digo escrever, não publicar. Minha poesia – boa ou má – cresce lentamente e publico apenas algo do que escrevo. Algumas vezes por capricho, e outras pela insistência de alguns amigos.

FM – Reconhece uma poética em sua poesia?

AP – Não sei se a tenho. Suponho que sim, mas, em todo caso, espero que meu hipócrita leitor possa intuí-la (mas não a entenda de todo) ao ler meus poemas.

FM – Para o poeta Enrique Molina “não há conhecimento mais verdadeiro que o da experiência direta”, e conclui: “o mundo sempre está se entregando a todo aquele que esteja disposto a pagar-lhe em paixão e crueldade”. A poesia é forma de conhecimento? Ou, ainda citando o poeta argentino, “a mais desesperada tentativa de salvação de uma conduta existencial”?

AP – A poesia é uma forma de conhecimento? Uma paixão do conhecimento, como escreveu Vicente Aleixandre? É, suponho, uma proposta de marginalização ante uma sociedade imposta, feliz em todos os seus momentos e ansiosamente obsecada em seus esquecimentos. Todos os indivíduos, todas as sociedades (inclusive as mais miseráveis, a partir de seu ponto de vista material), são felizes ou esperam sê-lo. O poeta tem que marginalizar-se para ser.

FM – Stefan Baciu, em sua Antología de la poesía surrealista latinoamericana (Ediciones Universitarias de Valparaíso. Chile. 1981), estabelece uma distinção necessária entre aqueles poetas que eram de fato surrealistas – Aldo Pellegrini, Braulio Arenas, César Moro etc. – e os que eram apenas tocados pelo surrealismo, que ele chamava de surrealizantes – Federico García Lorca, Rafael Alberti, Pablo Neruda, Vicente Aleixandre etc. Observa ainda que “esta mistura permanente do surrealista com o surrealizante é um dos perigos que enfrentam a literatura e a história literária, e a confusão tem sido tão grande que se organizam listas, livros e até antologias com surrealistas que, na realidade, são surrealizantes, e mesmo assim somente até certa época”. O que você pensa acerca de tal distinção?

AP – Fujamos dos historiadores da literatura. Envelhecem com cada geração e seus juízos valem menos que promessa de político. Daí excluo minha modesta entrada materializada em alguns ensaios, entre os quais se conta a Antología de la poesía surrealista, em língua espanhola, que agora nos ocupa. Não sou professor, nem vivo esse mundo de catalogações e fichas. Sou – ou pretendo ser, daí minha exclusão – um poeta, ávido leitor, que pretende fixar suas obsessões literárias. Por fim, estudo o que me agrada e me encontro totalmente alheio, por minha profissão e minha vontade, à burocracia do ensino.
Tudo isto vem como cotejo à distinção de Stefan Baciu sobre poetas surrealistas ou surrealizantes. O livro de Baciu é estimável mas esta afirmação está, a meu ver, fora de lugar. Não conheço a edição chilena de 1981 que você me cita, já que consultei a mexicana de 1974 e talvez este acerto tenha sido matizado. Se se aplicar, por exemplo, este critério a outras escolas ou movimentos literários de épocas precedentes, notar-se-ia então a debilidade do raciocínio. Pensemos no romantismo, desde o aparecimento de Lyrical ballads, em 1798, e nas escolas românticas na Alemanha, França e, não nos esqueçamos, Espanha e América. Hoje é difícil distinguir os “romantizantes”. Como é difícil distinguir, segundo a divisão de Baciu, o poeta surrealista do surrealizante, pelo menos tal como nos é apresentada. Estamos seguros de que Octavio Paz é um poeta surrealista – já que não somente o próprio Baciu o inclui em sua antologia mas que também se encontra nas antologias do surrealismo francês –, e que são surrealizantes Lorca, Alberti e Aleixandre? Poeta en Nueva York, Sobre los ángeles e Pasión de la tierra são surrealizantes e ¿Águila o sol? ou Vuelta surrealistas? Temo que esta distinção se faça porque se está tendo em conta outros livros destes poetas; possivelmente os romances gitanos de Lorca e a poesia política de Alberti, que efetivamente não são surrealistas. Porém este critério nos levaria a excluir do surrealismo os iniciadores deste movimento na França, como Louis Aragón, Paul Éluard e um longo etc., por causa de Le musée grévin ou Poèmes politiques. Sejamos prudentes e tentemos excluir os partidarismos. Aragon, Éluard, são surrealistas em Une vague de rèves, Le pausan de Paris, Capitale de la douleur e L’amour la poèsie, e não o são em Les communistes, La diane française e Une leçon de morale, da mesma forma que o são Lorca, Alberti, Cernuda, Aleixandre e Neruda em Poeta en Nueva York, Sobre los ángeles, Un río, un amor e Residencia en la tierra e não o são em Romancero gitano, De un momento a otro, Desolación de la quimera, Historia del corazón e Las uvas y el viento. Mas se se trata de mesclar a política com a literatura, perfeitamente normal por outro lado, a mesma balança deveria ser utilizada para pesar a “Oda a Stalin”, de Neruda, e os louvores à Junta Militar chilena, de Braulio Arenas.

FM – Quais os critérios adotados na feitura desta sua antologia? Por exemplo: Enrique Gómez-Correa, Francisco Madariaga, Teófilo Cid, que são poetas essencialmente surrealistas, estão fora da antologia, enquanto outros que tiveram importância menor dentro do quadro geral do surrealismo, tais como Camilo José Cela, Leopoldo Panero e Juan Sierra, estão ali presentes.

AP – Sobre os critérios para selecionar os textos e autores da antologia, queria dizer que, além da adscrição literária que dá título ao volume, tencionei – e não sei se consegui – selecionar os poemas de mais qualidade e só então, finalmente os agrupei por autores. O livro pretende antologar poesias surrealistas e somente em segundo termo apresenta-se como uma antologia de autores. É por isto que a extensão que ocupa cada poeta dentro do livro não deve ser entendida como uma hierarquia de valores literários. É, ou pretende ser, repito, uma reunião de poesias surrealistas, e não de autores.

FM – Que poeta teria representado o papel de precursor do Surrealismo na Espanha?

AP – Em sentido estrito é difícil falar de precursores do surrealismo. Os surrealistas, como os românticos, não nascem já na cúspide de sua perfeição e há um longo caminho balizado de referências culturais; mas não só destas. O poeta surrealista é devedor de um grupo numeroso de pessoas que, de alguma forma, estiveram em conflito com seu meio. Em meu livro chamo de “ancestros” os homens e mulheres aos quais os surrealistas franceses foram especialmente devotos (e não sei se a palavra devotos é a apropriada): Rimbaud, Lewis Carrol, Baudelaire, Lautréamont, Sade, Apollinaire, Nerval, são alguns deles.
De qualquer maneira, não há nenhuma dúvida de que antes de 1924 o embrião que conduz ao surrealismo teve um nome: Dadá. Na Espanha, o criacionismo ou o ultraísmo merecem figurar como o primeiro motor da futura revolução literária. Se no movimento Dadá figuram Tzara, Breton e Aragón, no criacionismo e no ultraísmo estiveram Vicente Huidobro e Gerardo Diego, como aproximações marginais do primeiro Alberti. Outros nomes presentes no ultraísmo e que posteriormente encontraram outra forma de expressão, talvez convenha citá-los agora: Jorge Luis Borges, José Rivas Panedas, César A. Comet, Guillermo de Torre, Isaac del Vando Villar, Eliodoro Puche, ultraístas/criacionistas americanos e espanhóis, unidos pelo idioma em uma mesma aventura cultural.

FM – Que características diferenciariam o Surrealismo espanhol do americano?

AP – Não me atrevo a opinar sobre as diferenças entre um e outro. São mais notórios os traços comuns que os diferenciais. Talvez os poetas americanos (Moro, Westphalen, Pellegrini etc.) tenham sido mais audaciosos, mais revolucionários, na busca de uma linguagem poética.

FM – Na seleção de poemas do chileno Vicente Huidobro e do peruano César Vallejo, você não incluiu textos de Altazor e Trilce, que são, respectivamente, suas obras de maior importância no que se refere à renovação da linguagem poética. Há algum motivo em especial?

AP – A não inclusão de Altazor, de Huidobro, em minha Antologia surrealista, foi decisão de última hora. Por problemas de edição não era possível incluir o poema inteiro e eu resistia a selecionar um fragmento de um texto tão difícil de fracionar. Talvez estas vacilações devessem ter sido expostas no livro.
Minha opinião é que Trilce, de César Vallejo, da mesma forma que Manual de espuma, de Gerardo Diego, não são surrealistas. No caso do segundo livro, faz parte desse grupo de publicações que hoje conhecemos com o nome de Dadá, ultraísmo ou criacionismo e que, em rigor, pertencem a outra época.

FM – Você incluiu Cinco metros de poemas, do peruano Carlos Oquendo de Amat, em uma lista de livros, ao lado de Pasión de la tierra, Poeta en Nueva York, Altazor etc., que teriam revolucionado a poesia espanhola – segundo texto de contracapa da antologia. Quais critérios foram adotados para a configuração de tal lista? Poderia nos falar um pouco mais a respeito destes livros? Acaso En la masmédula, do argentino Oliverio Girondo, não deveria ser incluído como um dos principais livros n a poesia de língua espanhola?

AP – Não intervi na confecção do texto onde se relacionam os livros “destinados a revolucionar a poesia espanhola”. Este texto da capa do livro foi preparado pela editora, ainda que recolha minhas opiniões sobre a poesia escrita em espanhol em finais dos anos vinte e princípios da década seguinte. O livro de Oliverio Girondo, En la masmédula, cujas poesias recolho em minha antologia, foi publicado no ano de 1954 e fica fora da relação de sete títulos por razões cronológicas. Sem fazer agora aborrecidas análises comparativas, quero dizer que a influência de Altazor, Poeta en Nueva York, Sobre los ángeles, Residencia en la tierra, foi considerável. Livros lidos por várias gerações de poetas na Espanha e na América. Talvez a influência de Cinco metros de poemas seja menos visível, mas este texto singular de um poeta raro e maldito tem mais continuadores do que supomos. En la masmédula é um grande livro, mas sua influência foi consideravelmente menor por ter sido publicado fora de seu tempo. Isto é o que eu acho.

FM – Você incluiu Pablo Neruda em tua antologia. Isto me faz lembrar o fato de que Breton o repudiava. Certa vez comentou que o poeta chileno costumava exagerar a narração de suas perseguições políticas “para o uso de certa propaganda”, afirmando que este fato seria suficiente para “desqualificá-lo do ponto de vista surrealista”.

AP – Quem tem dúvidas de que Residencia en la tierra bebeu da fonte surrealista? O surrealismo é um grupo, escola, facção, ou como quer que seja chamado, contraditório, e é esta, talvez, uma de suas muitas virtudes. O surrealismo é liberdade e como tal há que ser entendido, e estaria espartilhado com um programa prévio. Nem sequer Breton deve ser seguido ao pé da letra. Se Breton pensou que Neruda exagerava suas perseguições políticas e este fato o desqualificava do ponto de vista surrealista, não se pode duvidar que Paul Éluard, Louis Aragon, Antonin Artaud, Philippe Soupault, Jacques Prévert, Ribemont-Dessaignes e Robert Desnos não formem parte do surrealismo por sua militância política ou por outras causas. Estes aspectos contraditórios do surrealismo e do próprio Breton constituem sua idiossincrasia.

FM – O escândalo era uma das grandes armas surrealistas. Quais algumas das intervenções escandalosas mais célebres dos surrealistas espanhóis?

AP – Os surrealistas espanhóis não foram promotores de escândalos. Talvez por excesso de escrúpulos, coisa que na Espanha dos anos 30 era difícil de romper. Alguns deles, conto em meu livro. Recordemos este protagonizado por Buñuel e Lorca:

Barbeados e maquilados cuidadosamente, entravam nos ônibus de Madrid disfarçados de monjas na hora de maior afluência. Olhares insinuantes e apertões provocados semeavam o desconcerto, talvez o pânico, entre os passageiros masculinos. Buñuel explicava esta ação como fruto de uma campanha anticlerical de fabricação própria, minuciosamente preparada.

Como fato verídico narra-o um de seus protagonistas. Depois de 1936 os escândalos, se acaso existiram, passariam despercebidos.

FM – Em relação ao Surrealismo, o que viria acrescentar o postismo, de Carlos Edmundo de Ory, Eduardo Chicharro e Silvano Sernesi?

AP – O postismo foi um movimento estranho no panorama literário da Espanha do pós-guerra. A sordidez mental, para não falar também de torpezas materiais, não ajudava à consolidação de escolas cujo mérito principal era a busca do novo. Em uma Espanha obrigada a recordar seu passado imperial como antídoto para esquecer um presente, com uma censura férrea, uma literatura cuja premissa principal era a provocação e o escândalo – ainda que fossem apenas literários –, não encontrava nenhuma possibilidade de expressar-se. Foi uma ação testemunhal, uma ilha de vegetação exótica e espontânea, rodeada por um mar sulcado por couraçados e mercantes. Restam do postismo seus poemas e a figura, hoje patriarcal e marginalizada, de Carlos Edmundo de Ory.

FM – Há dois livros seus de estudos sobre a obra de Luis de Góngora. De onde vem este seu interesse pelo poeta das Soledades, o poeta da “metáfora ao quadrado”, segundo o cubano Severo Sarduy?

AP – A paixão por Góngora é uma paixão de juventude. E eu já a estou vendo da distância dos anos. Góngora é um “poeta da transgressão”. Como não admirar-lhe dentro deste nosso ordenado século XX? Há no poeta culterano a decisão de escrever construindo uma língua poética, e isto é, de algum modo, o que aspiramos todos os poetas. Juan Larrea, o surrealista espanhol, escreveu: “o gongorismo […] cuja obscuridade nasce de um desejo de distinção e não de uma emoção”.

FM – Concorda, para finalizarmos, com Borges, ao dizer que “a página da perfeição, a pagina onde nenhuma palavra pode ser alterada sem dano, é a mais precária de todas”?

AP – Não estou de acordo. Ou, pelo menos, creio que essa página perfeita não o é nunca para seu autor. Por outro lado não sei muito bem o que quer dizer Borges com a palavra “precário” neste contexto. Talvez se trate de um gracejo ou o reverso do verso de Keats: “A thing of beauty is a joy for ever”, mesmo que razoável de forma bastante livre.

[1985]


[Entrevista incluída no livro O Começo da Busca - O surrealismo na poesia da América Latina, de Floriano Martins (São Paulo: Escrituras Editora, 2001).]

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