segunda-feira, 1 de dezembro de 2014

ANTONIO CÁNDIDO FRANCO & NICOLAU SAIÃO | Surrealismo em Portugal














O diálogo que segue vem sendo preparado como parte integrante de um livro de Floriano Martins dedicado ao estudo do Surrealismo na Península Ibérica. Aqui reproduzimos um fragmento de conversa que o poeta e ensaísta brasileiro teve com dois importantes nomes ligados ao surrealismo português: o poeta, tradutor, ensaísta e artista plástico Nicolau Saião (1946) e o poeta, ensaísta e editor Antonio Cándido Franco (1956).



António Cândido Franco

FLORIANO MARTINS | Simbolismo, Modernismo, Futurismo – com quais desses momentos melhor se identifica o Surrealismo em Portugal? O crítico brasileiro, de origem austríaca, Otto Maria Carpeaux (1900-1978), em sua História da literatura ocidental, aponta “a ausência de um verdadeiro Simbolismo em Portugal”, ao mesmo tempo em que situa Mario de Sá-Carneiro e Fernando Pessoa como “dois poetas de formação esteticista mas de ambições que já antecipam o Surrealismo”. Por onde começamos? Gostaria aqui de fazer menção a um termo valioso do António Cándido Franco, o de “afinidade involuntária”.

ANTONIO CÁNDIDO FRANCO | Quando lemos alguns dos poemas de Oaristos (1890), por exemplo o décimo primeiro, ou “A Epifania dos Licornes” de Horas (1891), ou ainda “Um Cacto no Polo” do mesmo livro, percebemos que a poesia de Eugénio de Castro, um poeta hoje quase esquecido, mas que na época foi admirado por Ruben Dario e pelos simbolistas franceses, chega para impugnar a asserção de Carpeaux (e, claro, para tirar muita novidade à poesia de Pessoa – que em alguns momentos se limita quase a glosar a poesia de Eugénio de Castro).
Faltou-te porém referir o Saudosismo, que é talvez a afinidade involuntária do Surrealismo português. O Saudosismo pode ser encarado como um desenvolvimento português do Simbolismo ou dos aspectos mais misteriosos dele. O poeta crucial deste movimento, Teixeira de Pascoaes, foi o antecedente poético de Mário Cesariny; entre os poetas portugueses logo anteriores que ele tinha à disposição, e muitos eram (Antero, Gomes Leal, Junqueiro, Nobre, Eugénio de Castro, Ângelo de Lima, Pessanha, Pessoa, Sá-Carneiro, Florbela, Raul Leal, Almada, Régio), foi Teixeira de Pascoaes que ele elegeu.
As relações entre o Saudosismo e o Surrealismo estão infelizmente por estudar. O próprio Saudosismo, sobretudo na evolução da sua linha interna, aquela que vai por exemplo de 1912 a 1942, quer dizer, do momento do seu nascimento à publicação dum livro tão excepcional como Duplo Passeio, é muito mal conhecido e em geral tende a passar despercebido (como a tua pergunta confirma).

NICOLAU SAIÃO | O nó do problema creio que assenta nas condições de antidemocracia que sempre – sublinho, sempre) – existiram em Portugal, não só propiciadas por uma classe dominante extremamente cínica e autoritária mas, ainda, pelo seu tipo de cultura primarizada e pela sua mentalidade inculta, plebeia no sentido exato e o seu reacionarismo incrementado e sustentado por um tipo de fideísmo profundamente limitado e preconceituoso que tentava eliminar, espingardear ou suster tudo o que lhe cheirasse a modernidade ou trouxesse o selo de algo menos academizado. Sempre dominaram os estabelecimentos de ensino a alto nível, que em Portugal são os órgãos que controlam apertadamente os sectores intelectuais que fazem entre nós a chuva e o bom tempo por razões óbvias. Era assim dantes e continua a ser assim hoje. Daí que as afinidades entre os autores/criadores tenham de ser involuntárias ou, dizendo de outra maneira, conforme se pode…
Isso faz com que, ainda neste tempo em que vivemos, ou sobrevivemos, a arte moderna em geral e o surrealismo em especial sejam olhados como excrescências carnosas, produtos de quase marginais, de gente que não se deve deixar entrar, preferentemente, nos salões onde os donos da sociedade exercem a sua música e a sua dança contra tudo o que é legítimo em vida sã.
Portugal segue sendo um entreposto claramente de signo cripto-fascista, mau grado a maquiagem arranjada nos primeiros tempos a seguir ao 25 de Abril – maquiagem essa que, por já não lhes fazer falta, têm estado a abandonar com decisão. Só têm algum respeito pela chamada arte moderna em sentido lato porque esta, nos lugares onde o ambiente é mais salubre, vale muito dinheiro! Sá- Carneiro e Fernando Pessoa, como se sabe, foram sempre corpos estranhos no tempo em que estavam inseridos. E o panorama continua a ser assim… exceto se o autor/artista se alcandorou por companheirismos ou afeições, geralmente, aos lugares de topo da “árvore dos níveis”…

FM | O que evidencia a revolução surrealista em Portugal e como ela se insere em um mapa da Península Ibérica? Penso aqui nas relações entre Cesariny e Buñuel, que bem poderiam ter sido ampliadas, considerando afinidades históricas. Cesariny chega a comentar tangencialmente acerca de Juan Larrea, J. V. Foix, José María de Hinojosa… Porém nunca houve entendimento entre as duas vertentes surrealistas. Algum motivo determinante?

ACF | O choque do surrealismo em Espanha e em autores de língua espanhola (como Cesar Moro) foi temporão. Basta pensar na importância que Buñuel e Dali têm nos primeiros anos de afirmação do Surrealismo francês. Nada de parecido aconteceu em Portugal ou em criadores da língua portuguesa, e isto mau grado Péret ter passado quase dois anos no Sul do Brasil nos anos heroicos que se seguiram à criação do Surrealismo. Logo o destino dos dois movimentos foi distinto e raras vezes coincidente. Ainda assim Mário Cesariny, além de traduzir Buñuel e ter relações próximas no seu círculo, penso em José Francisco Aranda, teve uma afinidade expressa e um convívio intenso com Eugenio Granell, o grande criador catalão, que viveu exilado muitos anos em Nova Iorque. O mesmo se passou com Cruzeiro Seixas.

NS | O que a revolução surrealista, encarada a nível europeu ou mesmo ibérico, evidencia, é a meu ver as enormes dificuldades de se existir autonomamente, livremente. O poder político-social, precisamente pelas razões históricas nos dois países, tentou sempre impedir que fôsse fácil existirem relações entre os criadores daqui e dali. Por isso o cardo foi sempre enorme, parafraseando uma expressão de Cesariny…

FM | As cartas de António Maria Lisboa constituem uma fonte de iluminação sobre inúmeros aspectos referentes ao Surrealismo em Portugal. Poucos anos antes de sua morte, já descrente da perspectiva de reestruturação grupal do movimento, lemos em uma carta destinada a Cesariny ali imprimir seu desejo de ver seus amigos uma vez mais a seu lado, “desta vez não com a sombra de um Breton”. E em uma de suas últimas cartas, já no Sanatório da Quinta dos Vales Covões, em Coimbra, 1952, comenta com Mário Henrique Leiria acerca de uma “fundamental dificuldade” dos surrealistas: “sair da fácil expressão, do hábito a que dialeticamente se deram e onde anti-dialeticamente permanecem”, finalizando: “Breton será mil vezes culpado”. Até onde acerta António Maria Lisboa, não propriamente acerca de uma culpa de Breton, mas antes de uma falta de identidade no tocante ao Surrealismo em Portugal?

ACF | É natural que um poeta com a dimensão invulgar dum António Maria Lisboa se quisesse autonomizar de Breton, isto depois de o procurar e de com ele ter aprendido muito ou mesmo tudo. Caso tivesse sobrevivido à doença que o levou em 1953, aos 25 anos, convenço-me que não teria tido qualquer questão em se associar ao folheto com que o grupo de Cesariny homenageou A. Breton, no momento da morte deste, em 1966. O texto, chamado (Neófito) Não há morte na morte de André Breton, está hoje recolhido no livro As mãos na água a cabeça no mar (1985). Só um movimento consciente de si, atento às suas infinitas possibilidades, muito rodado na estrada do mistério e do amor, podia produzir tão altiva e bela homenagem.

NS | A culpa de Breton, digamos assim simbolicamente, assentou no fato de que ele vivia numa França aberta e os surrealistas portugueses, ou que tentavam sê-lo, viviam num Portugal do antigo regime, ultraconservador e muitas vezes ultramontano. Em França era-se hostilizado pela mentalidade academicista da classe dominante, mas em Portugal ia-se parar diretamente, sem paninhos quentes, à prisão, à miséria econômica e à marginalização pura e simples. O que agravava as divergências, as questiúnculas e os destrambelhamentos até, dos autores portugueses, meros sobreviventes de uma nação dominada por gente nefanda.

FM | Há um comentário de Adolfo Casais Monteiro - A palavra essencial, 1972 - sobre composição e espontaneidade em que recorda que, “tal como em toda a literatura, também nas criações surrealistas havia uma diferença abissal entre a poesia espontânea de uns e a espontânea… vacuidade dos restantes”. Como lidou o Surrealismo em Portugal com essa aparente ambiguidade?

ACF | Ao contrário do que pensava Casais Monteiro, o Surrealismo não era uma questão de talento. O terreno matricial do Surrealismo não é o da estética (literária ou artística) mas o da ética humana, que procura conciliar a liberdade explosiva das pulsões interiores com a ordem clássica e exterior da sociedade. Pode-se ser surrealista sem se ter escrito uma única linha; pode-se ser surrealista sem se ter pegado uma única vez num pincel; pode-se passar de todo ao lado do Surrealismo depois de se terem escrito muitos poemas ou pintado muitas telas “surrealistas”. A “vacuidade”, para quem se situa no plano da aventura interior, como sucede com o Surrealismo, só pode ser a dos “artistas”. Também houve destes em Portugal, e de peso, a começar por António Pedro e a acabar em José-Augusto França, passando ainda por Jorge de Sena. Trataram o Surrealismo como uma questão de ter ou não ter “jeitinho”. Passaram assim ao lado do que mais importa.

NS | Lidou mal, necessariamente. E o contrário é que seria estranho. Um surrealista autentico, em Portugal, vive ainda hoje, como vivia dantes, sob a férula de poetinhas que promovem, controlam, selecionam e acatitam muitíssimas vezes ilustres mediocratas que exibem como gente de grande gabarito.
Não é pois uma ambiguidade, mas uma consequência de Portugal ter sempre vivido no domínio apertado de aparelhagens de extermínio moral que epigrafa os “surrealistas” que lhes convém epigrafar. Liofilizados ou amansados. Objetos de literatura no pior sentido do termo. E quem se rebela… fica frito por esses cozinheiros de más iguarias.

Nicolau Saião

FM | Seria possível imaginar um Surrealismo outro em Portugal sem a figura tutelar de Mário Cesariny de Vasconcelos?

ACF | Sem Cesariny, o Surrealismo português ainda seria o mesmo, se o António Maria Lisboa que tivemos ainda tivesse podido, sem ele, Cesariny, ser o que foi (até no diálogo com Pedro Oom), o que se duvida, pois cada um deles foi uma parte do outro e não podia porventura ser o que foi sem ela. Sem Cesariny e sem Lisboa, o Surrealismo português teria sido porém “outro”, muito menos autêntico e muito mais estético. O que se perdia em aventura e exaltação ganhava-se em truque e habilidade. A poesia, que no Surrealismo português se elevou altura ímpar, digna da mais alta aventura humana, teria decaído em simples literatura descartável.

NS | A realidade é que foi como foi. Cesariny, da maneira que pôde ou lhe consentiram, foi um resistente. Bem, mal, assim-assim? Sei das dificuldades que teve, que muitas vezes lhe criaram, já pela hostilidade já, depois, por o querem jungir a um surrealismo que, se fosse como eles determinavam, seria então credor de aplausos e de carinhos…duvidosos. Acresce que Cesariny tinha uma orientação sexual que essa gente tentava fosse a marca da sua totalidade enquanto ser humano/autor. O truque infame é bem conhecido…numa sociedade fideísta e, mais que isso, que se serve do fideísmo, tal qual se serve doutras afins, como arma de repressão e opressão.

FM | Quais relações podemos encontrar entre Surrealismo e o happening, como já o propusera Ernesto de Sousa em 1969, ao reunir poemas de Almada Negreiros, Mário Cesariny, Herberto Helder e Luiza Neto Jorge? E quais desdobramentos relevantes podemos comentar?

ACF | Se o happening se situar apenas no domínio da arte multimédia, ou mesmo da poesia dita literária, consagrada pela História da Literatura, não me parece que tenha alguma coisa a ver com Surrealismo. Se entrar pelo campo magnético da expansão de fenômenos psíquicos desconhecidos aí o contacto estabelece-se. O teatro ritualístico e mágico de Judith Malina e de Julian Beck parece-me modelar de como o happening, pondo a nu a alma, se pode tornar uma forma de viver em colectivo o Surrealismo.
NS | Não o sei exatamente. Só sei que Cesariny, por várias vezes, me referiu que em Portugal o fenômeno happening corria o risco de acabar por ser uma coisa em estilo Parque Mayer. O que eu pude observar deixou-me muitas vezes com a sensação de que ele, que era um fino observador, percebera que numa sociedade como a nossa se corria sempre o risco de se mergulhar num “melting pot” transversalmente atravessado por um ar eventualmente percorrido por fumos e odores nada salubres.

FM | O que o tema Surrealismo significa hoje em Portugal?

ACF | Para uns significa criação estética e está por isso confinado a um período limitado que vai da década de 40 à década seguinte (e pouco mais); para outros significa uma porta aberta, que nunca mais se fechou, para metamorfosear o mundo e conhecer sem limites o interior do homem.

NS | Algo que foi e continua a ser, da parte dos seus criadores sem jaça, qualquer coisa de muito luminoso, mau-grado as sombras que lhe tentaram sempre criar na figura. Da parte dos observadores que estabelecem os seus figurinos e as suas indumentárias para o baile social, algo que conviria desaparecesse o mais depressa possível. Apesar de o surrealismo praticamente não contar para nada socialmente, neste país, se pudesse ser exterminado deixaria muitíssimo mais felizes os que sentem no sapatinho essa pedra incómoda.



segunda-feira, 25 de agosto de 2014

SÉRGIO LIMA | Aventuras do surrealismo



FM Qual a tua visão crítica acerca do Surrealismo em relação à sua influência na cultural ocidental contemporânea?

SL O Surrealismo permanece como a mais radical contestação da Civilização Ocidental e seus modernismos (prefiro o termo “Civilização” a Cultura, visto não ser apenas uma atividade artística e seus similares). Por outro lado, é inegável – como já se observou em outras ocasiões – que o Surrealismo influenciou todo um contexto do Amor e da Poesia contemporânea, restituindo, digamos, uma certa noção do sagrado extra-religioso. Como já frisaram diversas personalidades do pensamento contemporâneo (Gaston Bachelard, Jules Monnerot, Georges Bataille, Walter Benjamin, Octavio Paz, Herbert Marcuse, Norman O. Brown, Kostas Axelos, Juan-Eduardo Cirlot, Nicolas Calas e outros), a busca espiritual que funda o Surrealismo – “libertação total do espírito e de todos os meios à sua mão” – é um dos fundamentos da experiência humana e sua afirmação na época Moderna, o que vale dizer que em outras épocas também houve tal questionamento, embora sem constituir-se, no entanto, como um movimento grupal, afora as exceções. Assim, em cadeia com as demais recusas dos continuísmos modernistas, seu questionamento é absolutamente moderno, como queria Rimbaud, e sua permanência até à atualidade não deixa de ser uma denúncia flagrante das diversas minimizações e diluições de que foi alvo. Suas inúmeras influências falam das deturpações e não de sua perspectiva, de sua direção, de seu vetor revolucionário.
Contrário ao sucesso e aos nacionalismos (e todos os modernismos brasileiros apoiaram-se em um forte pendor nacionalista, salvo a “Antropofagia”), o movimento surrealista não se inscreve na seriação dos “ismos” como se vem pretendendo há um bom tempo nas suas abordagens acadêmicas e historicistas. Se por um lado podemos constatar o insucesso de seu projeto de transformar o mundo, aspecto idealista de seu projeto, por outro não se deve calar o quanto de transformações sua práxis dialética realizou em vários domínios, desde o pessoal até àqueles dos ditos tabus: a condição do poeta, do artista, da sexualidade, do social e do psíquico. Com o Surrealismo foram alçadas à categoria de valor certas práticas até então mal vistas ou desqualificadas: o automatismo formal e informal; o ditado do desejo e o registro parapsicológico; o espontâneo e o acaso-objetivo; a collage e a poesia-objeto; os princípios de magia na operação plástica; a revelação como condição da poesia; o tão decantado frenesi da imagem e a primazia da beleza convulsiva; o amor incondicional (amor paixão, amor absoluto, amor louco, amor sublime) etc. etc.

FM Quais motivos te impulsionaram à realização desta imensa pesquisa que ora resulta na publicação deste primeiro volume de A aventura surrealista?

SL Como persistiam as mais variadas malversações do Surrealismo e seu movimento na historiografia brasileira, resolvi estabelecer um referencial significativo para eventuais estudos e aproximações que pudessem ocorrer. Sobretudo subsidiar o aspecto mais grave da questão no Brasil, que é a ausência de reflexão sobre o Surrealismo e sua afirmação no país, em que pese os ditos contrários. Reflexão essa que vinha esbarrando nas reiteradas pás de cal já de uso nos meios de informação (o Surrealismo é, sem dúvida, o movimento no período moderno que mais avisos de óbito já recebeu, o que aliás continua a se dar). É ponto pacífico que tal recenseamento não visa a entronização do Surrealismo no escaninho dos gêneros literários ou outras compartimentações do oficial, mas sim o acesso a seu repertório de provocações e feitos.
O levantamento documental da história e percurso, subterrâneo em geral, no cenário brasileiro, fez-me deparar com os prejuízos que aqui se instituíram – da metade dos anos 20 para cá. Ao contrário do que rezam as crônicas oficiais, a presença marcante de obras do Movimento no Brasil provocou uma primeira dilatação do projeto inicial, ao qual vinha se somar a necessidade de incluir um critério de prospecção e de exposição objetiva dos seus feitos e fatos. A ausência de reflexões aprofundadas sobre sua vigência no país (um dos artifícios do seu religioso encobrimento), implicou, por sua vez, em acrescentar as coordenadas principais de sua constituição como movimento e posição: o que veio a ser esse primeiro volume (tomo 1) de A aventura surrealista. As poucas referências brasileiras no capítulo das coordenadas, ou vertentes formadoras da concepção do Surrealismo decorre, portanto, do que acabamos de afirmar.
Já os tomos 2 e 3 são propriamente a Cronologia Essencial do Surrealismo no Brasil, ano a ano, dos 20 até 1992 – fatos que estão pautados com comentários críticos e que vêm dispostos, face a face, com quadro sincrônico internacional do Movimento (com destaque para América Latina, Espanha, Portugal e Estados Unidos). A ênfase no caráter documental e sua exposição cronológica, preenchendo as lacunas de referências existentes, resultou em uma longa extensão, pela própria natureza de suas incidências e pertinências. Além do mais, a montagem sincrônica e espacial (datas, fatos e obras) pretende situar historicamente os diversos eventos e seus respectivos contextos, deixando de se abordar o Brasil como um recorte regionalista, nacionalista e isolado de tudo que medrou e se inter-relacionou com as nossas figuras neste século. Assim, o quadro sincrônico e as reproduções, texto e visual, funcionarão como ilustração ao ininterrupto fluir da datação brasileira exposta, a qual se estende regularmente, visto que acompanhamos as etapas de todos os diversos autores referentes do movimento do Surrealismo.
Como é sabido, certos autores, se bem que identificados ao Movimento e mesmo fazendo recurso a certas de suas reivindicações, nem por isso vincularam-se à sua militância (grupal e polêmica). Assim, tanto no Brasil quanto no exterior, temos no Surrealismo as participações grupais e as singulares. Estabelecemos como método três casos distintamente abordados: os autores do Surrealismo (grupais e singulares); os autores com ligação com o movimento, mas não participantes de seu espírito; e determinados autores que, mesmo contrários ao movimento, cometeram obras singulares e às quais o Surrealismo reivindica sua pertinência. Tal critério explicita ao mesmo tempo que o Surrealismo não é um clube fechado e nem uma seita ou igreja, muito embora não deixe de ser uma sociedade secreta ou bando de cavaleiros com a mesma direção, a mesma busca, o mesmo ideal.

FM Em texto que abre o segundo volume de A aventura surrealista há uma clara referência à “distorção e o consequente sequestro sofrido pelos Manifestos do Surrealismo, por parte das elites do pensamento e das artes, no modernismo brasileiro”. Lembro também que o título de uma conferência tua na Espanha (em abril de 1994) era exatamente “O surrealismo no Brasil: a construção interessada de uma ausência”. Poderias aclarar um pouco a respeito desse ocultamento intencional?

SL É notório o consenso de que “não houve” o movimento do Surrealismo no Brasil por parte da crítica oficial. De Tristão de Athayde a Afrânio Coutinho, de Antônio Cândido a outros historiadores mais recentes. Porém os fatos dizem justamente o contrário: não só houve obras e publicações e mesmo atividades coletivas nos anos 20 (além da presença e das atividades e dos escritos de Benjamin Péret, de 1929 a 1931, junto à “Antropofagia” e ao Mário Pedrosa, ao Osório César e ao Flávio de Carvalho), como também episódios de relevo nos anos 30 e 40 (apesar da hegemonia totalitária do stalinismo e do realismo-socialista, do regionalismo e da arte engajada), como também toda a efervescência dos 50 e a formação do primeiro grupo do movimento no Brasil, de 1965 a 1969. Fatos que continuaram a se suceder, até o atual grupo surrealista de São Paulo/Fortaleza/Porto Alegre, com 12 artistas e escritores militantes, fundado em 1991.
Da mesma forma que à recepção de Péret implicam um antes e um depois, o mesmo vale para as atuações de Flávio de Carvalho ou Maria Martins ou Aníbal Machado ou Murilo Mendes. Contudo, a documentação histórica e fatual também comprova uma resistência quase feroz por parte dos chefes-de-fila dos modernismos brasileiros, sob a bandeira do nacionalismo e da “identidade nacional” (Mário de Andrade), ou do tradicionalismo-regionalista (Gilberto Freyre) e seus ufanismos e suas xenofobias explícitas. Bandeira nacionalista que encobriu diversos aspectos da política brasileira e que tem se pautado ao longo deste século por uma discutível auto-suficiência e “originalidade” bem próxima do racismo vigente (encobriu, por exemplo, as diferenças da pluralidade brasileira e desqualificou a mestiçagem como contribuição inovadora, substituindo-a pelo famoso “sincretismo” etno-religioso).
O silêncio sobre o Surrealismo e sua presença no Brasil é complexo de se aclarar, não só pela sedimentação da desinformação intencional ao longo destas últimas seis décadas, como ainda pelas relações íntimas que entretêm com a face política de “oposição de esquerda” e do empenho revolucionário e libertário, além de incluir nomes literalmente riscados de revisões críticas. Muito embora o Surrealismo, ao contrário dos vanguardismos, tenha primado por sucessivas revisões críticas e correções de rumo, em uma atualização permanente frente à realidade em que opera – tal não acontecendo com a historiografia crítica no Brasil, neste caso, ainda pendente de preconceitos e injustiças que se institucionalizaram, em prol de interesses e posições políticas bastante discutíveis. A base política do encobrimento por que tem passado a marginalização do Surrealismo no Brasil (além de sua postura à margem, como é sabido), configura-se em um processo explícito de sequestro – similar ao que propiciou a exclusão do Barroco dos sistemas literários de maior aceitação em nosso país: fora também uma questão de nacionalismo. Nacionalismo que permitiu e permite, conforme o artigo “Uma palavra instável”, do Prof. Antônio Cândido, recentemente publicado na Folha de São Paulo (27/08/95), avançar que “hoje nacionalismo é pelo menos uma estratégia indispensável de defesa, porque é na escala da nação que temos de lutar contra a absorção econômica do imperialismo”, ou, citando o mesmo autor, “consagrando a palavra ‘nacionalismo’ como algo progressista, tanto na busca de uma cultura vinculada ao povo, quanto na politização da inteligência e da arte”. Ora, como se sabe muito bem, todos os vanguardismos foram progressistas, e logo se transformaram em regionalismos nacionalistas, ao passo que o Surrealismo assume por definição a crítica do(s) modernismo(s) e seu continuísmo, seu progressismo – posição esta muito clara e imediatamente percebida pelos modernistas brasileiros que logo irão aderir ao nacionalismo e, na década seguinte, ao regime ditatorial e/ou populismo. Observa ainda Antônio Cândido, “a palavra ‘nacionalismo’ foi mais do que nunca um rótulo querido pelas concepções tradicionalistas e conservadoras”. Como se pode ver, o nacionalismo tem longa duração nas áreas do poder e do pensamento brasileiros. Porém, é inequívoco que a discussão do Surrealismo ou da Oposição Comunista e do trotskismo no Brasil insere-se na discussão da oposição ao nacionalismo e seu auge verde-amarelo. O silêncio que pesa sobre estas oposições é o da “ordem e progresso”.
[1988]

[Entrevista incluída no livro O Começo da Busca - O surrealismo na poesia da América Latina, de Floriano Martins (São Paulo: Escrituras Editora, 2001).]

FRANCISCO MADARIAGA | Uma breve conversa



FM – Conhecimento do mundo, ordenação do espírito (“sou aquele que possui os desejos do zelo da terra”), experiência da experiência, duelo com o indizível, caudal de evocações… De que nos fala a poesia?

FM – A poesia eclode do fundo solar do poeta e projeta-se diretamente nas ventarolas da consciência e no coração dos homens. Não recolhe impurezas em seu caminho, como a prosa; tudo sai por inteiro e a um só tempo, inclusive a história, na imagem.

FM – Se pensarmos em nomes tão distantes entre si, como Leopoldo Marechal, Jorge Luis Borges, Oliverio Girondo, Leopoldo Lugones, teríamos aí algumas de suas influências?

FM – Conheci e fui muito amigo de Oliverio Girondo, o maior poeta deste país e um dos enormes poetas latino-americanos. Não creio haver tido nenhuma influência dele, e muito menos de Marechal, Lugones e Borges… Os poetas de todos os tempos, desde Hesíodo, mesclaram-se com a minha natureza e os homens pânicos de Corrientes, e eu sou apenas um peão do planeta.

FM – Corrientes é o ponto de partida de tua poesia. Como disse Juan Antonio Vasco, no prefácio de uma antologia tua publicada na Venezuela em 1983, tornaste Corrientes o “centro de tua própria universalidade autêntica”. Achas possível pensar o poema como criação da comunidade, fusão entre realidade e imaginário de uma coletividade? Acreditas que tenhas realizado tal fusão?

FM – Corrientes é um cosmos, qualquer outra palavra sobre isto terá que ser buscada em meus poemas, se de mim se trata.

FM – O que significou, no quadro geral de tua obra, tua passagem pelo Surrealismo? Até que ponto o Surrealismo – no que pese o fato de que o grupo formado por Aldo Pellegrini tenha tido um caráter precursor em toda a extensão do idioma – alterou o cenário da poesia argentina?

FM – A grande tentativa de liberdade, amor, purificação e rebeldia do Surrealismo, seu grande salto ao amor (e por amor), deixaram, sim, muitas trilhas em mim. Fui um aliado leal do Surrealismo que, já o sabemos, na América se encontra em estado natural. A escrita automática me foi ordenada pelas almas e as fadas de Corrientes, e, repito, fui apenas o peão do planeta diante dessas ordens. Aldo Pellegrini, não se pode esquecer, fez muitíssimo pela verdadeira poesia na América Latina.

FM – Eis o fragmento de um ensaio de Octavio Paz sobre Castañeda: “as drogas, as práticas ascéticas e os exercícios de meditação não são fins mas sim meios. Se o meio se torna fim, converte-se em agente de destruição. O resultado não é a liberação interior, mas sim a escravidão, a loucura e não a sabedoria, a degradação e não a visão. Isto é o que tem ocorrido nos últimos anos. As drogas alucinógenas têm se tornado potências destrutivas porque têm sido arrancadas de seu contexto teológico e ritual.” O que pensa a este respeito? Alguma vez recorreste às drogas na feitura de teus poemas?

FM – Estou de acordo com o fragmento de Paz sobre as drogas. As únicas drogas que tenho conhecido são as que exalam os grandes rios, pântanos, lagoas e palmeirais de Corrientes, vapores com cheiro de serpentes e sáurios e cavalos.

FM – Em teu livro Resplandor de mis bárbaras (1985) há uma citação de Baudelaire: “Deus é o único ser que para reinar não tem necessidade de existir”. Qual é o teu Deus?

FM – Meu Deus é o DEUS RAS… do horizonte, entre o céu, a terra e a água. Somente a ele me recomendo.

FM – Tiveste algum contato com a poesia de Jacobo Fijman? O conheceste pessoalmente? Poderia nos falar dele, de até que ponto teria sido injustiçado dentro do panorama geral da poesia argentina (penso, por exemplo, no caso de Juan Ortiz)?

FM – Conheço a obra de Fijman, é válida sua inserção no panorama poético argentino. Quanto a Juan L. Ortiz, foi um grande e verdadeiro poeta. Também fui seu amigo.

FM – Mário Benedetti declarou certa vez que as ditaduras instaladas ao longo do continente americano seriam o fator determinante do isolamento cultural aí encontrado. Concordarias com ele ou acaso seriam outras as razões de tal isolamento (que ainda hoje persiste)?

FM – Teríamos talvez que convocar as almas de Bernardo de Monteagudo, na Argentina, e as de Simón Bolívar. Talvez elas pudessem definitivamente nos dar uma luz sobre as causas do isolamento em geral.

FM – Gostarias de falar sobre a situação da atual poesia argentina? Penso em uma verdadeira avalanche de nomes: Roberto Juarroz, Leónidas Lamborghini, Santiago Perednik, Victor Redondo, Hugo Pedaletti, Arturo Carrera, Nahuel Santana, Néstor Perlongher etc. Quais, a teu ver, as mudanças ocorridas na poesia argentina após os ventos fortes do Surrealismo?

FM – Enrique Molina, Edgar Bayley, Olga Orozco, Hugo Gola e outros, estão em plena e elevada maturidade. Estou de acordo com que recordes, por exemplo, Victor Redondo e Arturo Carrera – eu acrescentaria outros, como Daniel Freidemberg e Diana Bellessi, e muitos outros jovens que caminham muito bem, e que são poetas.

[1987]


[Entrevista incluída no livro O Começo da Busca - O surrealismo na poesia da América Latina, de Floriano Martins (São Paulo: Escrituras Editora, 2001).]

ÁNGEL PARIENTE | Sobre surrealismo



FM – Sua estreia na poesia se deu aos 31 anos de idade e, no ensaio, aos 44 anos. Há alguma razão específica para tal fato?

AP – Penso que se trata de um problema de ritmo vital. Os livros vão se escrevendo lentamente e, em algum momento, estão prontos. Às vezes são mais de um, como no caso de Góngora, pois investigando o poeta barroco surgiu um estudo sobre sua obra, uma edição de escritos e uma antologia da poesia culterana. Três livros crescendo a um só tempo.
Ainda que não pareça, a Antología de la poesía surrealista me levou dez anos, talvez mais, ainda que intermitentemente. Ainda agitam a cauda alguns projetos à sombra do surrealismo e nestes dias estou começando a traduzir panfletos, proclamas e outros escritos surrealistas que agruparei com o título Razonado desorden (Textos surrealistas). Digo que estou traduzindo, mas também recolherei textos escritos em espanhol por Pellegrini, Dalí etc.
Não me preocupa a escritura, mesmo que não possa viver sem escrever. Digo escrever, não publicar. Minha poesia – boa ou má – cresce lentamente e publico apenas algo do que escrevo. Algumas vezes por capricho, e outras pela insistência de alguns amigos.

FM – Reconhece uma poética em sua poesia?

AP – Não sei se a tenho. Suponho que sim, mas, em todo caso, espero que meu hipócrita leitor possa intuí-la (mas não a entenda de todo) ao ler meus poemas.

FM – Para o poeta Enrique Molina “não há conhecimento mais verdadeiro que o da experiência direta”, e conclui: “o mundo sempre está se entregando a todo aquele que esteja disposto a pagar-lhe em paixão e crueldade”. A poesia é forma de conhecimento? Ou, ainda citando o poeta argentino, “a mais desesperada tentativa de salvação de uma conduta existencial”?

AP – A poesia é uma forma de conhecimento? Uma paixão do conhecimento, como escreveu Vicente Aleixandre? É, suponho, uma proposta de marginalização ante uma sociedade imposta, feliz em todos os seus momentos e ansiosamente obsecada em seus esquecimentos. Todos os indivíduos, todas as sociedades (inclusive as mais miseráveis, a partir de seu ponto de vista material), são felizes ou esperam sê-lo. O poeta tem que marginalizar-se para ser.

FM – Stefan Baciu, em sua Antología de la poesía surrealista latinoamericana (Ediciones Universitarias de Valparaíso. Chile. 1981), estabelece uma distinção necessária entre aqueles poetas que eram de fato surrealistas – Aldo Pellegrini, Braulio Arenas, César Moro etc. – e os que eram apenas tocados pelo surrealismo, que ele chamava de surrealizantes – Federico García Lorca, Rafael Alberti, Pablo Neruda, Vicente Aleixandre etc. Observa ainda que “esta mistura permanente do surrealista com o surrealizante é um dos perigos que enfrentam a literatura e a história literária, e a confusão tem sido tão grande que se organizam listas, livros e até antologias com surrealistas que, na realidade, são surrealizantes, e mesmo assim somente até certa época”. O que você pensa acerca de tal distinção?

AP – Fujamos dos historiadores da literatura. Envelhecem com cada geração e seus juízos valem menos que promessa de político. Daí excluo minha modesta entrada materializada em alguns ensaios, entre os quais se conta a Antología de la poesía surrealista, em língua espanhola, que agora nos ocupa. Não sou professor, nem vivo esse mundo de catalogações e fichas. Sou – ou pretendo ser, daí minha exclusão – um poeta, ávido leitor, que pretende fixar suas obsessões literárias. Por fim, estudo o que me agrada e me encontro totalmente alheio, por minha profissão e minha vontade, à burocracia do ensino.
Tudo isto vem como cotejo à distinção de Stefan Baciu sobre poetas surrealistas ou surrealizantes. O livro de Baciu é estimável mas esta afirmação está, a meu ver, fora de lugar. Não conheço a edição chilena de 1981 que você me cita, já que consultei a mexicana de 1974 e talvez este acerto tenha sido matizado. Se se aplicar, por exemplo, este critério a outras escolas ou movimentos literários de épocas precedentes, notar-se-ia então a debilidade do raciocínio. Pensemos no romantismo, desde o aparecimento de Lyrical ballads, em 1798, e nas escolas românticas na Alemanha, França e, não nos esqueçamos, Espanha e América. Hoje é difícil distinguir os “romantizantes”. Como é difícil distinguir, segundo a divisão de Baciu, o poeta surrealista do surrealizante, pelo menos tal como nos é apresentada. Estamos seguros de que Octavio Paz é um poeta surrealista – já que não somente o próprio Baciu o inclui em sua antologia mas que também se encontra nas antologias do surrealismo francês –, e que são surrealizantes Lorca, Alberti e Aleixandre? Poeta en Nueva York, Sobre los ángeles e Pasión de la tierra são surrealizantes e ¿Águila o sol? ou Vuelta surrealistas? Temo que esta distinção se faça porque se está tendo em conta outros livros destes poetas; possivelmente os romances gitanos de Lorca e a poesia política de Alberti, que efetivamente não são surrealistas. Porém este critério nos levaria a excluir do surrealismo os iniciadores deste movimento na França, como Louis Aragón, Paul Éluard e um longo etc., por causa de Le musée grévin ou Poèmes politiques. Sejamos prudentes e tentemos excluir os partidarismos. Aragon, Éluard, são surrealistas em Une vague de rèves, Le pausan de Paris, Capitale de la douleur e L’amour la poèsie, e não o são em Les communistes, La diane française e Une leçon de morale, da mesma forma que o são Lorca, Alberti, Cernuda, Aleixandre e Neruda em Poeta en Nueva York, Sobre los ángeles, Un río, un amor e Residencia en la tierra e não o são em Romancero gitano, De un momento a otro, Desolación de la quimera, Historia del corazón e Las uvas y el viento. Mas se se trata de mesclar a política com a literatura, perfeitamente normal por outro lado, a mesma balança deveria ser utilizada para pesar a “Oda a Stalin”, de Neruda, e os louvores à Junta Militar chilena, de Braulio Arenas.

FM – Quais os critérios adotados na feitura desta sua antologia? Por exemplo: Enrique Gómez-Correa, Francisco Madariaga, Teófilo Cid, que são poetas essencialmente surrealistas, estão fora da antologia, enquanto outros que tiveram importância menor dentro do quadro geral do surrealismo, tais como Camilo José Cela, Leopoldo Panero e Juan Sierra, estão ali presentes.

AP – Sobre os critérios para selecionar os textos e autores da antologia, queria dizer que, além da adscrição literária que dá título ao volume, tencionei – e não sei se consegui – selecionar os poemas de mais qualidade e só então, finalmente os agrupei por autores. O livro pretende antologar poesias surrealistas e somente em segundo termo apresenta-se como uma antologia de autores. É por isto que a extensão que ocupa cada poeta dentro do livro não deve ser entendida como uma hierarquia de valores literários. É, ou pretende ser, repito, uma reunião de poesias surrealistas, e não de autores.

FM – Que poeta teria representado o papel de precursor do Surrealismo na Espanha?

AP – Em sentido estrito é difícil falar de precursores do surrealismo. Os surrealistas, como os românticos, não nascem já na cúspide de sua perfeição e há um longo caminho balizado de referências culturais; mas não só destas. O poeta surrealista é devedor de um grupo numeroso de pessoas que, de alguma forma, estiveram em conflito com seu meio. Em meu livro chamo de “ancestros” os homens e mulheres aos quais os surrealistas franceses foram especialmente devotos (e não sei se a palavra devotos é a apropriada): Rimbaud, Lewis Carrol, Baudelaire, Lautréamont, Sade, Apollinaire, Nerval, são alguns deles.
De qualquer maneira, não há nenhuma dúvida de que antes de 1924 o embrião que conduz ao surrealismo teve um nome: Dadá. Na Espanha, o criacionismo ou o ultraísmo merecem figurar como o primeiro motor da futura revolução literária. Se no movimento Dadá figuram Tzara, Breton e Aragón, no criacionismo e no ultraísmo estiveram Vicente Huidobro e Gerardo Diego, como aproximações marginais do primeiro Alberti. Outros nomes presentes no ultraísmo e que posteriormente encontraram outra forma de expressão, talvez convenha citá-los agora: Jorge Luis Borges, José Rivas Panedas, César A. Comet, Guillermo de Torre, Isaac del Vando Villar, Eliodoro Puche, ultraístas/criacionistas americanos e espanhóis, unidos pelo idioma em uma mesma aventura cultural.

FM – Que características diferenciariam o Surrealismo espanhol do americano?

AP – Não me atrevo a opinar sobre as diferenças entre um e outro. São mais notórios os traços comuns que os diferenciais. Talvez os poetas americanos (Moro, Westphalen, Pellegrini etc.) tenham sido mais audaciosos, mais revolucionários, na busca de uma linguagem poética.

FM – Na seleção de poemas do chileno Vicente Huidobro e do peruano César Vallejo, você não incluiu textos de Altazor e Trilce, que são, respectivamente, suas obras de maior importância no que se refere à renovação da linguagem poética. Há algum motivo em especial?

AP – A não inclusão de Altazor, de Huidobro, em minha Antologia surrealista, foi decisão de última hora. Por problemas de edição não era possível incluir o poema inteiro e eu resistia a selecionar um fragmento de um texto tão difícil de fracionar. Talvez estas vacilações devessem ter sido expostas no livro.
Minha opinião é que Trilce, de César Vallejo, da mesma forma que Manual de espuma, de Gerardo Diego, não são surrealistas. No caso do segundo livro, faz parte desse grupo de publicações que hoje conhecemos com o nome de Dadá, ultraísmo ou criacionismo e que, em rigor, pertencem a outra época.

FM – Você incluiu Cinco metros de poemas, do peruano Carlos Oquendo de Amat, em uma lista de livros, ao lado de Pasión de la tierra, Poeta en Nueva York, Altazor etc., que teriam revolucionado a poesia espanhola – segundo texto de contracapa da antologia. Quais critérios foram adotados para a configuração de tal lista? Poderia nos falar um pouco mais a respeito destes livros? Acaso En la masmédula, do argentino Oliverio Girondo, não deveria ser incluído como um dos principais livros n a poesia de língua espanhola?

AP – Não intervi na confecção do texto onde se relacionam os livros “destinados a revolucionar a poesia espanhola”. Este texto da capa do livro foi preparado pela editora, ainda que recolha minhas opiniões sobre a poesia escrita em espanhol em finais dos anos vinte e princípios da década seguinte. O livro de Oliverio Girondo, En la masmédula, cujas poesias recolho em minha antologia, foi publicado no ano de 1954 e fica fora da relação de sete títulos por razões cronológicas. Sem fazer agora aborrecidas análises comparativas, quero dizer que a influência de Altazor, Poeta en Nueva York, Sobre los ángeles, Residencia en la tierra, foi considerável. Livros lidos por várias gerações de poetas na Espanha e na América. Talvez a influência de Cinco metros de poemas seja menos visível, mas este texto singular de um poeta raro e maldito tem mais continuadores do que supomos. En la masmédula é um grande livro, mas sua influência foi consideravelmente menor por ter sido publicado fora de seu tempo. Isto é o que eu acho.

FM – Você incluiu Pablo Neruda em tua antologia. Isto me faz lembrar o fato de que Breton o repudiava. Certa vez comentou que o poeta chileno costumava exagerar a narração de suas perseguições políticas “para o uso de certa propaganda”, afirmando que este fato seria suficiente para “desqualificá-lo do ponto de vista surrealista”.

AP – Quem tem dúvidas de que Residencia en la tierra bebeu da fonte surrealista? O surrealismo é um grupo, escola, facção, ou como quer que seja chamado, contraditório, e é esta, talvez, uma de suas muitas virtudes. O surrealismo é liberdade e como tal há que ser entendido, e estaria espartilhado com um programa prévio. Nem sequer Breton deve ser seguido ao pé da letra. Se Breton pensou que Neruda exagerava suas perseguições políticas e este fato o desqualificava do ponto de vista surrealista, não se pode duvidar que Paul Éluard, Louis Aragon, Antonin Artaud, Philippe Soupault, Jacques Prévert, Ribemont-Dessaignes e Robert Desnos não formem parte do surrealismo por sua militância política ou por outras causas. Estes aspectos contraditórios do surrealismo e do próprio Breton constituem sua idiossincrasia.

FM – O escândalo era uma das grandes armas surrealistas. Quais algumas das intervenções escandalosas mais célebres dos surrealistas espanhóis?

AP – Os surrealistas espanhóis não foram promotores de escândalos. Talvez por excesso de escrúpulos, coisa que na Espanha dos anos 30 era difícil de romper. Alguns deles, conto em meu livro. Recordemos este protagonizado por Buñuel e Lorca:

Barbeados e maquilados cuidadosamente, entravam nos ônibus de Madrid disfarçados de monjas na hora de maior afluência. Olhares insinuantes e apertões provocados semeavam o desconcerto, talvez o pânico, entre os passageiros masculinos. Buñuel explicava esta ação como fruto de uma campanha anticlerical de fabricação própria, minuciosamente preparada.

Como fato verídico narra-o um de seus protagonistas. Depois de 1936 os escândalos, se acaso existiram, passariam despercebidos.

FM – Em relação ao Surrealismo, o que viria acrescentar o postismo, de Carlos Edmundo de Ory, Eduardo Chicharro e Silvano Sernesi?

AP – O postismo foi um movimento estranho no panorama literário da Espanha do pós-guerra. A sordidez mental, para não falar também de torpezas materiais, não ajudava à consolidação de escolas cujo mérito principal era a busca do novo. Em uma Espanha obrigada a recordar seu passado imperial como antídoto para esquecer um presente, com uma censura férrea, uma literatura cuja premissa principal era a provocação e o escândalo – ainda que fossem apenas literários –, não encontrava nenhuma possibilidade de expressar-se. Foi uma ação testemunhal, uma ilha de vegetação exótica e espontânea, rodeada por um mar sulcado por couraçados e mercantes. Restam do postismo seus poemas e a figura, hoje patriarcal e marginalizada, de Carlos Edmundo de Ory.

FM – Há dois livros seus de estudos sobre a obra de Luis de Góngora. De onde vem este seu interesse pelo poeta das Soledades, o poeta da “metáfora ao quadrado”, segundo o cubano Severo Sarduy?

AP – A paixão por Góngora é uma paixão de juventude. E eu já a estou vendo da distância dos anos. Góngora é um “poeta da transgressão”. Como não admirar-lhe dentro deste nosso ordenado século XX? Há no poeta culterano a decisão de escrever construindo uma língua poética, e isto é, de algum modo, o que aspiramos todos os poetas. Juan Larrea, o surrealista espanhol, escreveu: “o gongorismo […] cuja obscuridade nasce de um desejo de distinção e não de uma emoção”.

FM – Concorda, para finalizarmos, com Borges, ao dizer que “a página da perfeição, a pagina onde nenhuma palavra pode ser alterada sem dano, é a mais precária de todas”?

AP – Não estou de acordo. Ou, pelo menos, creio que essa página perfeita não o é nunca para seu autor. Por outro lado não sei muito bem o que quer dizer Borges com a palavra “precário” neste contexto. Talvez se trate de um gracejo ou o reverso do verso de Keats: “A thing of beauty is a joy for ever”, mesmo que razoável de forma bastante livre.

[1985]


[Entrevista incluída no livro O Começo da Busca - O surrealismo na poesia da América Latina, de Floriano Martins (São Paulo: Escrituras Editora, 2001).]

ROBERTO PIVA | O banquete do poeta


FM Durante os anos de 1959 a 1961, você participou de um curso sobre a Divina Comédia, curso este ministrado por Edoardo Bizzarri, no Instituto Cultural Ítalo-Brasileiro. Dante teria sido a porta de entrada para a sua poesia?

RP Eu não tinha nenhum interesse em ser poeta. Eu queria ser gangster. Então eu andava pelas ruas de São Paulo, armado de revólver, com capa, imitando os filmes de gangster americanos, Humphrey Bogart etc. O problema é que eu não consegui ser gangster. Então acabei escrevendo poesia, que é uma forma de incentivar ao gangsterismo. Este curso sobre a Divina Comédia foi dado pelo então adido cultural da Itália no Brasil, e ali comentamos e discutimos os três livros de Dante (Inferno, Purgatório e Paraíso), um ano para cada livro. Eu acompanhei os três anos. O que aconteceu é que Dante, como todo verdadeiro poeta, era um nômade. Foi expulso da cidadezinha dele, entrou em choque com todos os poderes constituídos de sua cidade, com o tipo de governo que havia lá, e passou a vida como nômade, cada hora na corte de um nobre daqueles que lhe dava guarida. Eu também me sentia muito nômade, e havia uma grande identificação minha com todos os personagens de Dante. Eu talvez não seja nada mais do que um personagem do Inferno de Dante, que saltou fora da obra para deixar a realidade em completa desordem.

FM Em entrevista que fiz ao Claudio Willer, ele me falou de certas leituras de Heidegger que vocês faziam na casa do Vicente Ferreira da Silva.

RP O Vicente foi o único filósofo original que teve o Brasil. Era um cara que levava, não literariamente, não vegetarianamente, a proposição do Oswald de Andrade, de antropofagia. Para ele, antropofagia era antropofagia mesmo. Não era essa coisa literária, pasteurizada, que esses professores de literatura estão tentando fazer. Para ele, era devorar o outro, era comer o outro, comer, matar e comer. Ele achava que isto era o fundamental, porque ele era um filósofo dionisíaco, um filósofo do delírio. Como as Bacantes, tem que chegar lá e arrancar, matar os Penteus e devorar. Tem que ser devorado, que ser estuprado. Vicente lia ao pé da letra a antropofagia, e era um amigo íntimo do Oswald de Andrade. Daí que foram leituras e discussões de Heidegger e outros filósofos, outros autores, envolvendo muita gente, porque a casa do Vicente era um espaço cosmopolita, onde caras do mundo inteiro frequentavam, desde o Guimarães Rosa, passando por físicos italianos, poetas franceses, críticos americanos etc. Daí que eu acho que 99,9% dos poetas brasileiros são altamente provincianos. Provavelmente o único poeta brasileiro não provinciano foi o Murilo Mendes, dotado de uma visão internacional, geral, cosmopolita. Por isto que a minha grande influência poética no Brasil é o Murilo Mendes, e isto em todos os sentidos, porque eu vinha de uma escola que era a mesma do Vicente Ferreira da Silva, e a minha própria formação, sempre em contato com pessoas de várias nacionalidades, eu saí fora da tribo, ao mesmo tempo conhecendo profundamente essa tribo. Então esse provincianismo de escolinha, de igrejinhas, de tertúlias caretas de literatura, essa coisa de grupo, do tipo o cara vai no jornal e só elogia os caras do grupo dele, isto tudo é uma coisa medíocre, uma coisa provinciana que existe entre 99,9% dos poetas brasileiros. E na casa do Vicente não tinha isto. Lá se discutia Heidegger, se discutia Fernando Pessoa. Conheci lá, por exemplo, o Eudoro de Sousa, famoso intelectual português, exegeta de Fernando Pessoa. Eram momentos de grande participação, nossas leituras de poesia, nossas discussões de Heidegger. Na USP, veja bem, os comunistas da USP, os positivistas, nos olhavam como a molecada. Já o Vicente e a esposa dele, a Dora Ferreira da Silva, nos recebiam da mesma forma como a um Guimarães Rosa. Isto é que era bacana. Enquanto o pessoal da USP estava sempre nos marginalizando. Atualmente são os mesmos caras da USP, que naquela época combateram o meu livro Paranóia (1933), que atualmente, quando me vêem, ficam de olho arregalado e embasbacados, porque acham uma coisa maravilhosa, brilhante, e que descobriram isto vinte anos depois. No entanto, o Vicente, já naquela época – e ele morreu logo em seguida –, mostrava nossos textos para todas essas pessoas, e discutia com a gente com a mesma seriedade com que discutia com um Ernesto Grassi, um Eudoro de Sousa, um Guimarães Rosa. Enfim, todos bebíamos a mesma porção desse caldo filosófico que era a casa do Vicente Ferreira da Silva.

FM Há em sua poesia inúmeras referências musicais – “Miles Davis a 150 quilômetros por hora / caçando minhas visões como um demônio” ou “Paul Desmond com seu sax alto floreando em stacatto meu apartamento” – quase sempre jazzísticas.

RP O ritmo do jazz é inseparável da minha poesia. Aliás, agora que está na moda badalar o Chet Baker, você observa que em 1963 eu já falo dele em um verso meu. Agora ele está na moda, descobriram o cara quando ele está uma ruína, quando está em franca decadência, está democrático, convidando uns babacas do Rio de Janeiro, um pessoal que não sabe o que diz nem o que toca, para tocar com ele. Ele democratizou essa sua energia, e daí perdeu todo o pique. Atualmente ele é um cara totalmente sem aquele pique, aquela genialidade, sem aquela energia de transformação e de invenção que ele tinha, a ponto de influenciar a nossa Bossa Nova. E todo esse balanço da bossa é o balanço da minha poesia. Uma poesia sem música, sem jogo de cintura, é uma poesia rígida, dos comunistas, dos marxistas, uma poesia absolutamente trancada dentro de um túmulo que é o túmulo do leninismo, que já está fedendo. É claro que o rock também me influenciou, mas não teve a mesma importância que o jazz, o cool jazz. Mas há evidentemente alguma influência do rock, uma vez que pessoas como o Jim Morrison, Bob Dylan, Frank Zappa, são excelentes poetas. Então o rock me influenciou também, e até mesmo antes do jazz. Eu fui, por exemplo, um dos caras que em 1957 foi receber o Bill Haley, com um grupo de jovens, lá na Praça do Patriarca, onde ele se hospedou. Fomos fazer uma manifestação de carinho, de afeto. Posteriormente o jazz me influenciou, e logo em seguida a Bossa Nova. Eu fui apaixonado pela Bossa Nova. Então essas três correntes – o rock, a Bossa Nova e principalmente o jazz – são uma constante da influência musical na minha obra.

FM Há a seguinte passagem no livro 20 poemas com brócoli (1981): “não serei vossa sobremesa nesta curta temporada no inferno”. A rebeldia seria o último caminho para a arte no sentido de liquidar com o dopping da sociedade de consumo ou mesmo essa negação já teria sido absorvida pelo status quo, convertendo-se na “própria instituição burguesa do poético” (Luís Costa Lima)?

RP Minha obra tem que ser vista como um plano de fuga desta civilização. Tudo aquilo que eu escrevo, tudo aquilo que eu falo, que eu vivo, todas as trepadas que dou, é porque eu não tenho grana. Por isto eu queria ser gangster, para ter muito dinheiro e evadir desta civilização, morar em uma ilha, saltar fora, morar entre maometanos, eu não sei mais. Trata-se de um plano de fuga desta civilização. Evidente que toda a poesia, que grande parte da poesia brasileira, atualmente está pasteurizada e conchavada com a mídia. Tem jornais brasileiros – e seus suplementos – que são verdadeiros lobbies editoriais. As redações desses jornais tentam pegar poetas em que eles possam oferecer ao público uma visão uniforme da poesia brasileira. Há portanto uma castração em processo, uma castração em massa. Então está na hora dos verdadeiros poetas caírem fora deste circuito, de novo, e ficar naquela eterna de emergir e submergir, porque a pasteurização está aí, cada dia os versinhos estão mais bem comportados, as bordadeiras de poesia estão de volta, tudo isto. Então, eu acredito que a poesia-porrada, a poesia-cancerosa, a poesia-lisérgica, esta jamais será conchavada pelo sistema.

FM Você acredita que a vida se modifique, que o homem se aperfeiçoe?

RP A vida é um monte de ruínas. Não existe evolução, coisa nenhuma. E cada dia mais as pessoas estão voltando praticamente para uma idade da pedra da qual elas nunca saíram. Vale a pena escrever porque três ou quatro pessoas, meia dúzia aqui, outros tantos ali, amigos, um pequeno grupo de pessoas, no meu caso os garotos de periferia, os garotos subproletários, enfim, eles são pessoas que se identificam muito com o tipo de coisa que eu escrevo, porque eles não abolem, eles não tiram da cabeça um princípio básico para entender a minha poesia, a palavra criminal. Uma poesia cuja transgressão aponta, em última instância, para o crime, e para a anarquia generalizada – não o anarquismo, mas a Anarquia. A minha poesia nada mais é do que a tentativa de instaurar essa desordem no cotidiano das pessoas.

FM Recordo aqui Pasolini: “talvez a verdadeira tragédia de todo poeta seja a de só atingir o mundo metaforicamente, segundo as regras de uma magia definitivamente limitada na sua apropriação do mundo”.

RP Não tenha dúvida, o poeta é um solitário. Poeta que não é solitário são os poetas oficiais, professores universitários bem situados, casados, direitinho. Tem toda uma mídia atrás disso, visando transformar a poesia em mais uma armadilha que faz movimentar o rebanho. Então essa espécie de cumplicidade dessas pessoas com o sistema visa a venda de obras, ou seja, uma poesia feita em função do ego. A minha poesia não é feita em função do ego, e sim em função do delírio. Eu só acredito no delírio, do qual a poesia é uma das manifestações. Eu estou muito próximo da arte bruta, da arte com loucos, com crianças, dos meus amigos grafiteiros de muros… A poesia é para conduzir a isto. A poesia, diz Lautréamont, deve ser feita por todos. Não para todos, mas por todos, cada um à sua maneira. Agora, querer impingir para o povo brasileiro uma escola, um único capítulo da história da literatura como sendo o capítulo, isto é um absurdo. Existem milhares. A verdade é a variedade. Fora disto é a uniformidade, a coisa totalitária que eles querem impor, tanto os de direita quanto os de esquerda e os de centro, do alto, de baixo, todos querem uma visão uniforme da vida, como se isto fosse possível. Então todos estão aí querendo botar essa máscara, impingir esse túmulo para a sociedade brasileira, para a juventude. Agora, você sabe, tem aquele princípio zen, aquele princípio taoísta: quanto mais você pratica o não-agir mas as coisas correm a seu favor.

FM Encerro lembrando uma declaração recente do Pepe Escobar, publicada na Folha de São Paulo (27/07/85): “No Brasil não existe nem mesmo uma poesia trágica capaz de compensar nosso descarrilhamento histórico. Não temos nem mesmo uma Odisséia que retrate dignamente a agonia de nosso povo. Falta até mesmo o puro e simples tesão na cultura brasileira. Tudo gira em torno de compromissos de clubes, amanteigados por sublirismo. E tudo cai na impenitente banalização.”

RP Pois é, é tudo isto de que acabamos de falar. E tudo gira em torno de uma única palavra: provincianismo. E o cara sendo provinciano ele está perdido. O cara entrar nesse jogo da mídia, ele está perdido, porque isso passa, assim como lembrando uma frase de Brecht: “das cidades só vai sobrar o vento que passa sobre elas”.

[1985]

[Entrevista incluída no livro O Começo da Busca - O surrealismo na poesia da América Latina, de Floriano Martins (São Paulo: Escrituras Editora, 2001).]